class="html not-front not-logged-in one-sidebar sidebar-second page-frontpage">

            

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos - António Rodrigues Marques (Mir. Douro, 1637 – Londres, 1688) 

Depois de sair das masmorras do santo ofício de Coimbra, em 1667, o padre António Vieira foi para Roma e ali iniciou uma cruzada pessoal contra a inquisição.

Atitude semelhante tomou Pedro Lupina Freire, um homem que, antes de ser preso, fora secretário do tribunal do santo ofício de Lisboa e conhecia por dentro o funcionamento da máquina inquisitorial.

Ao conhecimento do papa chegou um documento (“Notícias Recônditas”) que o terá deixado horrorizado, contando casos concretos dos abusos dos inquisidores. Atribui-se a redação deste documento a Lupina Freire.

Obviamente que um e outro concertavam as suas ações com pessoas influentes da “nação” dos cristãos-novos que viviam em Lisboa, Amesterdão, Roma, Livorno e outras terras. E então, os cristãos-novos portugueses, elaboraram um plano com vista à obtenção de um perdão geral para os presos e a mudança dos métodos da inquisição, nomeadamente dando a conhecer aos processados as razões da sua prisão e as testemunhas dos seus crimes.(1)

Em simultâneo, e de acordo com o padre António Vieira, erigiram o padre Francisco Azevedo como seu representante na Cúria de Roma e instituíram uma comissão que em Lisboa representava os cristãos-novos portugueses, constituída por António Rodrigues Marques, Pedro Álvares Caldas e D. José de Castro.(2)

O facto é significativo da importância e prestígio do nosso biografado, que assumiu a liderança da contestação. Por outro lado, mostra um grande empenhamento da família Mogadouro no pedido do perdão geral e na ofensiva diplomática em Roma contra os métodos da inquisição. De referir também que o homem que levava e trazia o correio entre Lisboa e Roma era um homem da confiança de António Mogadouro, “preceptor” que foi dos seus filhos, chamado Gaspar Rodrigues Pereira, originário também de Mogadouro.(3)

Claro que a primeira tarefa dos negociadores em Roma foi a obtenção de salvo-condutos passados pelo papa àqueles três homens que, teoricamente, os livraria de ser presos pela inquisição. Teoricamente, porque, António Marques, depois da prisão do tio e dos primos Mogadouro, viu a inquisição prender também o “correio” Gaspar Lopes Pereira e, receando o pior, acabou por fugir para Londres, como adiante se verá.

Nascido em Miranda do Douro, por 1637, António era filho de Francisco Rodrigues, o marquês, (alcunha nascida do nome da mãe, Marquesa Rodrigues), irmão de António Mogadouro. Pequeno ainda, seria levado para Lisboa, quando seu pai para ali se mudou e abriu uma loja de mercador, na Rua dos Escudeiros.

Cedo o pai faleceu e António Marques ficou sob a proteção de seu tio António Mogadouro, que o mandou “estagiar” para a Baía, juntamente com o seu filho Francisco que, mais tarde, haveria de confessar na inquisição:

— A pessoa que lhe ensinou a crença na lei de Moisés foi António Rodrigues Marques, cristão-novo, homem de negócio, primo e cunhado dele confidente, viúvo de sua irmã Leonor Rodrigues (…) haverá 14 anos, na cidade de S. Salvador, estado do Brasil, em sua própria casa, onde ele confidente também assistia…

Regressou a Lisboa 7 anos depois e casou com sua prima Leonor Rodrigues, que logo depois faleceu, sem deixar descendência. António não mais casou, ficando a viver em casa do irmão, Diogo Marques, este casado com uma irmã da falecida.

Corriam florescentes os negócios dos Marques, com o António a assumir-se como grande contratador, quando a família Mogadouro foi arrastada para as masmorras da inquisição. E enquanto em Roma se negociava, também por Lisboa promovia António Marques outras diligências visando colher informações sobre os parentes presos e ajudá-los na sua defesa e libertação. Para isso conseguiu “comprar” os serviços do alcaide da cadeia, de modo a este deixar passar cartas e escritos entre ele e o primo Diogo Rodrigues Henriques e também dinheiro, essencial para corromper o alcaide e os guardas.

De Roma não vinha o perdão e em Lisboa os inquisidores descobriram o crime do alcaide. António Marques ficava em maus lençóis e a inquisição ganhava um novo argumento para exibir perante o papa.

António fez então embarcar para Inglaterra os membros da família que ainda não estavam presos, nomeadamente a sua mãe, o irmão, a cunhada e os filhos destes. E terá diligenciado a transferência de todos os valores possíveis, especialmente dinheiro e diamantes. Ele ficou por Lisboa, munido do salvo-conduto, pegando as pontas dos negócios que restavam das empresas dos Marques/Mogadouro. Inclusivamente há notícia de duas idas dele à sala da inquisição, na qualidade de testemunha, por causa da corrupção do alcaide e da morte de um preso, com um tiro que lhe deram, depois de sair da cadeia,(4) suspeitando-se que

os mandantes foram “judeus” por ele ser um traidor e denunciante dos Mogadouro.

Gorado o perdão geral e entrando de novo a funcionar a inquisição, António Rodrigues Marques sentiu que a sua vida corria perigo e nada havia já que o protegesse, pelo que fugiu para Inglaterra. Documentada está a sua presença em Lisboa em 22 de Fevereiro de 1681 quando assinou a carta de que atrás se falou para o padre Francisco de Azevedo. E sabemos que em 4 de Janeiro do ano seguinte, quando a inquisição foi procurá-lo (a ele e aos dois escravos referidos), já se encontrava em Londres.

E em Londres estava ainda em 2 de Janeiro de 1688 “na cama doente, mas de perfeito juízo” a fazer seu testamento.(5) E esta é uma verdadeira janela que se abre sobre as vivências deste homem. Nele deixa como herdeira e administradora de seus bens a sua mãe, Sara Henriques, encarregando-a de fazer diversas ofertas, a começar pela Congregação Hebraica de Londres. Mas entre as ofertas destacamos duas que bem revelam o ânimo deste “judeu novo”, renascido como a Fénix:

Deixava 200 libras esterlinas ao dr. Fernando Mendes para comprar uma jóia para a sua filha Catarina. Deve aqui dizer-se que o dr. Fernando Mendes era médico da rainha de Inglaterra, D. Catarina de Bragança e era casado com uma sobrinha de António Marques. Exatamente porque a rainha de Inglaterra foi madrinha da filha do dr. Fernando Mendes é que esta recebeu também o nome de Catarina. E isto mostra como os irmãos Marques, nascidos em Miranda do Douro, se movimentavam pela Corte de Inglaterra. Eles pertenciam à poderosa classe dos “judeus novos” construtores do mundo moderno capitalista.

Outro legado era para um segundo filho do mesmo, ainda pequeno. Mas nisso impunha o testador uma condição essencial:

— Pretendo que o dr. Fernando Mendes dê o meu nome ao filho e dentro de dois anos deve estar circuncidado. Se isto não acontecer, excluo o dr. Fernando Mendes e seu filho da minha herança.

E fez igualmente questão de incluir cláusulas semelhantes em legados para outros sobrinhos-netos, filhos de David de Medina e Samuel Ximenes, que apenas seriam entregues se tivessem o nome de Marques. 

 

Notas:

1 - TSO-CG/Papeis Avulsos, mç. 7, n.º 2635 – Comprometiam-se a colocar 5 mil homens na Índia, pagando todas as despesas; em cada ano renovariam as mesmas forças militares com 1200 homens e pagariam 20 mil cruzados para o sustento da gente da guerra naquelas paragens; forneceriam viáticos a todos os missionários da Índia e “as letras a todos os bispos” da região; obrigavam-se a criar e manter uma companhia de comércio da Índia, conforme a vontade do rei e em cada mês dariam 200 mil réis a quem o rei mandasse; havendo guerra, mandariam mais 300 homens armados, além dos 1200 referidos; para além disso, dariam todo o apoio aos governadores e os direitos de ida e volta ficariam sob alçada régia e ao rei prometiam mais serviço em caso de guerra em Portugal. O rei D. Pedro estaria disposto a aceitar tão magnânima oferta, até porque os holandeses e ingleses ameaçavam conquistar aquela e outras possessões ultramarinas. Porém, acabaria por recuar, face ao poder da inquisição e ao argumento simplista de um dos seus homens, o bispo de Leiria: — Se os cristãos-novos prometem 500 mil cruzados pelo perdão geral, tem Vossa Alteza leis justas e santas com que, por meio do Fisco, rendem mais que os 200 contos.

2 - ANTT, Armário Jesuítico, mç. 4, doc. 19 – Trata-se de uma carta escrita e assinada por aqueles três homens, dando conta das negociações e garantindo o pagamento de 6 mil escudos de despesas feitas pelo “embaixador” com “prendas” a dignitários da Santa Sé.

3 - ANDRADE e GUIMARÃES, Percursos de Gaspar Lopes Pereira e Francisco Lopes Pereira dois cristãos-novos de Mogadouro, in: Cadernos de Estudos Sefarditas, n.º 5, pp. 253 – 297, ed. Cátedra de Estudos Sefarditas “Alberto Benveniste”, Lisboa, 2005.

4 - ANTT- Inq. Lisboa, pº 81, de Manuel da Costa Martins.

5 - The National Archives – Public Record Office – Catalogue Reference: Prob/11/394 – Image Reference 548. Agradecemos a George Richard Henriques, arquiteto canadiano descendente direto de Ana Rodrigues, tia do nosso biografado, a cedência de cópia deste documento.

 

Requiem por uma greve de contornos pouco claros

Greve cirúrgica, assim lhe chamaram. Foram buscar à terminologia castrense o classificativo. Todos nos lembramos dos “ataques cirúrgicos” no Iraque e nos Balcãs. E esta greve era duplamente cirúrgica: 1.º porque assentava sobretudo na greve dos enfermeiros do bloco operatório(das cirurgias); 2.º porque o alvo da greve tinha sido escolhido “cirurgicamente”, ou seja, onde “dói” mais. Por isso o pré-aviso de greve não abrangia o País mas tão só 5 dos seus maiores Centros Hospitalares. O modelo da greve foi assim pensado para “criar constrangimentos económicos ao Estado” e teve sucesso pois em 4 dos 5 Centros o impacto da greve foi de 12 milhões de euros. Só no S. João foi de 5 milhões. Para este sucesso muito contribuíram os fundos, recolhidos em plataforma digital, para ressarcir, SÓ, os enfermeiros do Bloco Operatório. Estes, sem qualquer prejuízo pelo facto de fazerem greve estariam assim, indefinidamente, enquanto o sindicato quisesse. Se até então o grau de justeza das greves se media pelo grau de adesão das respectivas classes, para esta greve o sucesso assentava no número de cirurgias adiadas, os tais “constrangimentos” conseguidos à custa do sofrimento de terceiros pondo-lhe em causa aquilo que eles têm de mais sagrado: a saúde. Por isso é que interessava que os enfermeiros do Bloco não tivessem prejuízos com a greve a ponto de lhe pagarem o dia da falta com o dinheiro do tal fundo. Lá que foi bem estudado, foi, na parte da estratégia mas já não direi outro tanto no que diz respeito à ética e à moral. Os enfermeiros fizeram o seu juramento de Hipócrates. Lamentavelmente.

Mas fica um ensinamento para memória futura. Que as greves deveriam ter um mínimo de adesão da classe para serem consideradas legítimas. Sem esse mínimo, as faltas não teriam a cobertura que a Lei actual lhes dá. A greve é demasiado importante e séria para poder ser manipulada por chicos-espertos. Imagine-se este cenário: os sindicatos dos trabalhadores tributários fazem um pré-aviso de greve sem termo, isto é, por tempo indeterminado. Entretanto fazem saber, nos bastidores, que é para fazerem greve, SÓ, os tesoureiros (greve cirúrgica) e que esses não terão qualquer prejuízo pois serão ressarcidos por um fundo criado pelos próprios colegas. Como os tesoureiros são uma pequena minoria no conjunto dos trabalhadores tributários isto é fácil de conseguir. Os “constrangimentos” que daí viriam são fáceis de imaginar. Ficaria, assim, o País dependurado nos tesoureiros da Fazenda Pública independentemente do grau de adesão à greve do grosso da classe pois esses nem fariam greve.

Do caderno reivindicativo dos enfermeiros algumas coisas foram conseguidas outras não mas duas houve que provocaram a intransigência do Governo: uma foi o aumento de 400 euros na remuneração no início da carreira (de 1200 para 1600); outra foi a diminuição da idade mínima para a reforma. 57 anos, defendem, contra os 66 e 5 meses actuais.

Em relação ao aumento de 400 euros só posso dizer que a pretensão deixa qualquer um boquiaberto. Um aumento de 33% quando ninguém é aumentado? Um aumento que deixaria para trás todos os técnicos superiores da Função Pública (licenciados), porquê? Um aumento que tornaria o vencimento do Enfermeiro superior ao do Médico? Não me parece razoável mas uma delegada sindical instada a justificar esta pretensão do estatuto de “primus inter pares” não descartou essa hipótese e argumentou que a importância do Enfermeiro em nada é inferior à do Médico. Bom, o figurino do Acto Médico não mudou assim tanto. E ainda nos lembramos do Hospital velho onde o acto médico era praticado por médico com a ajuda de uma “Irmã” da Misericórdia. Aí víamos o médico exibindo os conhecimentos na elaboração das hipóteses; víamos a sua aflição na escolha da opção; víamos a sua angústia perante a possibilidade de erro; por fim víamo-lo intervir, um acto exclusivo da sua classe. Isto tudo perante a “Irmã” atenta, prestável e ansiosa por ser solicitada. E víamos, também, entre estas duas prestações um abismo qualitativo diferenciador. À Senhora enfermeira, delegada sindical, o que lhe sobra em jactância falta-lhe em senso comum.

O outro desiderato, de baixar a idade da reforma para os 57 anos, prende-se com a alegação de ser a profissão de enfermeiro uma profissão de desgaste rápido. Não sei a que desgaste se referem: se físico, se psíquico. Atleta de alta competição, controlador aéreo, piloto, bailarino são profissões de desgaste rápido, por razões físicas, e a gente entende porquê. Já não consigo irmanar os enfermeiros com estes profissionais no merecimento da benesse social. Quanto ao desgaste psíquico é verdade que ele incide mais nas profissões onde os trabalhadores têm um contacto directo com o público. Mas o público dos enfermeiros, os doentes, são um público cordato, obediente que cumprem sem pestanejar tudo que lhes é solicitado mas o mesmo já se não verifica nos públicos imprevisíveis dos taxistas, dos tributários executores de penhoras, dos guardas prisionais e sobretudo, sobretudo dos professores. Que razões, então, para os enfermeiros terem tratamento de excepção?

Mas não se pode falar desta greve sem falar dessa figura seráfica e sinistra que é a Bastonária da Ordem dos Enfermeiros. Ela, que em tom intimidatório, não descartou a hipótese de, nesta greve, poder haver “efeitos colaterais” assustadores. Mas ainda antes de falar da Bastonária quero contestar a existência da Ordem dos Enfermeiros. Assim: diz o Conselho Nacional das Ordens Profissionais que “ As ordens Profissionais são criadas com vista à defesa e à salvaguarda do interesse público e dos direitos fundamentais dos cidadãos e por outro lado a autorregulação de profissões cujo exercício exige independência técnica”. Ora aos enfermeiros está vedado o acto médico, trabalham sempre sob tutela, fazem o que lhes mandam fazer. Não vejo, pois, onde possa estar a independência técnica. As Ordens foram criadas para regular a actividade dos profissionais liberais. (Pelas mesmas razões contesto também a existência da Ordem dos Professores). Não compreendo a existência da Ordem dos Enfermeiros, no entanto, uma vez que existe podiam ao menos respeitar os fundamentos da criação de qualquer Ordem que são, como se lê em cima, “…com vista à defesa e à salvaguarda do interesse público e dos direitos fundamentais dos cidadãos…”. Foi, mesmo, o que se viu! Além disso vimos a Sr.ª Bastonária tomar a liderança do processo reivindicativo tutelando, até, reuniões de vários Sindicatos. Pois o Conselho das Ordens diz que (as Ordens) “Apenas podem ser constituídas para satisfação de necessidades específicas estando expressamente proibido o exercício de funções próprias das associações sindicais”. Daqui resulta que Ana Rita Cavaco não sabe o que é uma Ordem mas deslumbrada com o facto de ser Bastonária faz “tábua rasa” de uma série de valores, até do comedimento. “O que o berço não deu, Coimbra não dá”. Ela que é assessora do Dr. Rui Rio para a área da saúde, já disse que a liderança deste era um desastre, penso que por não apoiar inteiramente as reivindicações dos enfermeiros. Só lhe fica bem, não é? Espero que Rui Rio tenha presente a Lei de Gresham, aquela Lei que um dia Cavaco Silva enunciou e que diz, mais ou menos, que “a moeda má expulsa a moeda boa”. Rui Rio que se cuide.

Elevados, como os oceanos

Esta sexta-feira, 15 de março, uma elevada onda de contestação juvenil varreu o planeta sob o tema lançado pela jovem sueca Greta Thumberg “Para quê ir à Escola se não houver futuro? Para quê prepararem-se para um futuro que está ameaçado?” Esta greve à escola, pelo clima, é o objetivo comum que une estudantes de todo o mundo. As rádios noticiaram, os jornais descreveram e as televisões mostraram praças pelas capitais mundiais, e não só, repletas de jovens, gritando, pulando, empunhando cartazes e, muitos, com flores e ramos na cabeça.

Obviamente que não é difícil recordar tempos, situações e atitudes passadas, mesmo que, obviamente, com outros lemas, outras motivações, outros princípios. Fui, de imediato transportado para Bragança, aos estonteantes dias que se seguiram ao 25 de abril de 1974. Mesmo que idealistas, eram justas e mobilizadoras as reivindicações gritadas e exigidas em cartazes de cartolina pregados em bastões de madeira, descendo a rua Almirante Reis, em direção à Praça da Sé. Curiosamente é essa geração, a minha geração, que em meados dos anos setenta, pretendia mudar o mundo que é hoje acusada pelos jovens estudantes de estar a delapidar, irremediavelmente, o mundo em que vivemos. De saída, por ter ultrapassada a idade da reforma a juventude que arrancou as calçadas de Paris, jurando levar consigo a imaginação ao poder, proibir apenas todas as proibições e que nos arredores de Nova Iorque se reunia no mais mítico dos festivais musicais, enfeitando a cabeça com flores e reclamando que o que havia a fazer era o amor e não a guerra! (Curiosamente um dos cartazes que apareceu na Praça Camões em Lisboa, mimetizando, provavelmente, outras paragens apelava a que se fizesse amor e não CO2, usando o “O” para recuperar o célebre símbolo do movimento Hippie).

Talvez fosse possível, a olhares mais atentos da altura, identificar em algumas atitudes, sinais e tiques que pudessem indiciar, na rebeldia e no idealismos de então a sociedade em que nos transformámos e a desastrada forma como tratámos o planeta e o estado em que nos preparamos para o entregar aos nossos filhos e netos. Tal como agora não é difícil escrutinar estes movimentos e apontar-lhes o dedo, pois enquanto reclamam pela necessidade de preservar o mundo, não dispensam os telemóveis de última geração repletos de componentes não recicláveis e usam sapatilhas de marca, feitas na China, com materiais sintéticos e transportados para a Europa em aviões. Os mesmos aviões, agentes primeiros da poluição aérea, que não dispensam para irem de férias e outros passeios.

Contudo, fazê-lo, mesmo que isso me desse algum alívio de consciência, seria um erro grave. Porque são os passos na boa direção que contam, mesmo que pequenos, mesmo que imperfeitos, mesmo que tímidos. Porque os passos na direção errada, mesmo que minúsculos, (é só uma palhinha...) repetidos milhões de vezes, redundaram na catástrofe iminente que enfrentamos agora. É verdade que não consagrámos a imaginação nos cadeirões do poder, nem substituímos totalmente a guerra pelo amor. Mas também é verdade que, na Europa, nunca se viveu um período tão longo sem guerras e que nunca houve tantos regimes democráticos e populares. Mesmo que não consigam implementar todos os ideais proclamados por todo o mundo, se conseguirem inverter a trajetória suicida em que nos encontramos, terá, seguramente, valido a pena!

 

Caciquismo ao mais alto nível. O voto de cabresto

Muito badalada foi a visita triunfal do presidente Marcelo a Angola, apenas maculada pela omissão de um elementar laivo de respeito, uma palavra que fosse, para com os soldados de Portugal lá sepultados: negros, brancos e amarelos.

Nenhum político da era colonial teve recepção tão empolgante, o que só prova que a secular simpatia que liga os povos de Angola e de Portugal continua viva e que o colonialismo português não foi assim tão mau como certos vende pátrias maldizentes pretendem fazer crer, muito embora em nenhuma circunstância se deva silenciar factos históricos desfavoráveis.

O futuro das relações entre estes dois países irmãos mostra-se assim altamente prometedor. Oxalá os políticos saibam e queiram valorizar os laços históricos e culturais agora evidenciados em ambiente de independência e fraternidade.

Outros acontecimentos não mereceram, todavia, a devida atenção, apesar da importância que inegavelmente têm, com destaque para as já célebres listas eleitorais de António Costa e de Rui Rio, um tema recorrente que bole com a própria essência da democracia.

Listas que dariam fitas emocionantes se um qualquer Spielberg ousasse levar tais histórias à cena, parodiando A Lista de Schindler que, como se sabe, é um filme norte-americano de 1993 sobre Oskar Schindler, um empresário alemão que salvou a vida a centenas de judeus vítimas do Holocausto, com o argumento de que seriam mais úteis nas suas fábricas.

É por demais óbvio que António Costa e Rui Rio não elaboram listas para salvar judeus das câmaras de gás. Bem pelo contrário, escolhem, a dedo, os mais fiéis servidores para terem a certeza de que o partido os não ejecta a eles, seguros que estão de que o crédulo e pacato povo português não se amotina no campo de concentração em que o mantêm encurralado, fustigado pela corrupção e pela falsidade política. Nada lhes garante, todavia, que a bomba da Justiça não lhes estoure nas mãos quando menos se espera e que o Regime não entre em parafuso.

Quanto ao PCP nada se sabe, o secretismo é total. As suas listas são atiradas para a opinião pública prontinhas a ser impressas nos boletins de voto, depreendendo-se que são elaboradas em paz e harmonia, com inspiração do espirito santo marxista-leninista. O BE e o CDS também não têm dado nas vistas pelas mesmas ou por outras razões. Não é o caso do PS e do PSD, pedras de amolar da democracia, em que os amuos, as desforras e traições são públicas e notórias.

O problema fundamental, porém, não está na batalha campal em que os machuchos de PS e do PSD se engalfinham. Reside no facto das listas serem cozinhadas pelos directórios respectivos nas costas dos eleitores em geral e dos militantes em particular, o que constitui uma verdadeira afronta aos mais elementares princípios democráticos.

A isto os brasileiros chamam, ironicamente, voto de cabresto porque, à partida, os caciques partidários amarram os eleitores a quem eles muito bem entendem. Trata-se duma forma de caciquismo ao mais alto nível, portanto.

Esta a principal razão pela qual a maioria se abstém.

 

Este texto não se conforma com o novo

Acordo Ortográfico.

O cansaço da esperança

Recentemente, o papa Francisco dirigindo-se às pessoas consagradas, lembrou os danos para a sua igreja, falando de “cansaço da esperança”. A espantosa associação destes dois termos, na boca dum papa que sempre rejubila de alegria faz mergulhar qualquer pessoa que se esforça por manter a esperança a partir das duas extremidades que são a evidência da tristeza do ser humano que sofre o peso da tragédia na história, na sua história. Tudo isso afirmando o ponto Ómega da fé cristã que permanece na ideia de que tudo isso tem um sentido e que no fim de tudo haverá para cada um uma luz acolhedora e pacificadora num paraíso com a cor das nossas esperanças e onde Deus guarda o nosso lugar bem ao quentinho. Ao lado daqueles que nos precederam.

Mesmo assim. Há razões para desesperar por vezes quando nos encontramos confrontados, direta ou indiretamente, com a morte de alguém. Sobretudo se era jovem, bonito, e se tinha tudo para ser feliz hoje e amanhã, realidade e promessa. De donde lhe veio a ideia de acabar com a relação humana, de cortar as pontes com os outros? Onde nasceu essa necessidade interior que o levou a destruir brutalmente, duma só vez, o diálogo com os seus? A levar-nos todos para o universo do insondável silêncio racional e do aparente vazio duma doce conversa interrompida?

A morte não se explica. Não se julga. Deixa depois da sua passagem um sulco de incompreensão e de culpabilidade. Não releva duma mecânica explicativa do tipo causa/efeito. É mistério, escuridão, infelicidade espessa simplesmente. Fugidia. «Não percebo». Ligar este tipo de acontecimentos ao conceito de esperança como tentam fazer os mais valentes, nestes casos, não basta para convencer ou tranquilizar os que sobrevivem a estas provas.

Vive-se o luto.

Não, os mortos não estão connosco, nós é que queremos - custe o que custar – acreditar e permanecer perto deles. Quem já teve a experiência da morte duma pessoa mais próxima, esta injustiça muito frequente – e estamos todos nesse caso – sabe muito bem que o voluntarismo da esperança é uma arma com uma eficácia limitada, que não funciona porque o seu gume perde rapidamente o fio. Qualquer experiência do luto é a da vontade de tentar manter um contacto com a pessoa amada apesar da evidência e da distância que foi posta entre ela e nós.

A morte separa, arranca, e é preciso muita fé ou amor para se convencer de que não passa da primeira etapa dum percurso que leva em direção a uma reunião futura. A morte está efetivamente no centro do que provoca este cansaço de que fala o papa. Cansámo-nos de exercer continuamente a virtude cristã que consiste em dizer-se a propósito de toda a infelicidade que aparece que não passa duma etapa em direção à nossa felicidade futura, um mau momento a passar se tentarmos considerar o resto do caminho. Há também esta insuportável ideia repetida em certas épocas não assim tão distantes de que estas “provas nos são enviadas por Deus” para alimentar a nossa fé e testar a nossa capacidade de esperança. Compreende-se menos o (“ Deus mo deu, Deus mo levou …”) e ainda bem. A esperança cristã, à força de ser levada a contribuição, usa-se e cansa-se se a utilizamos muito. Seria preciso reinventá-la cada manhã.

Há revolta no absurdo? Há, mas também há absurdo na revolta. Aconteça o que acontecer há muitas auroras. Frescas, cinzentas ou radiosas, pálidas ou coloridas. O fundo de tristeza que dá o cansaço da esperança não pode ser combatido por outros sentimentos nascidos do prazer de existir, da paixão de estar no mundo, consigo mesmo, com os outros? Apesar da solidão profunda que deixa a morte dum ser querido continua, na atualidade das nossas existências de rescapados provisórios elementos de felicidade possível. Luzes nas nossas noites.

Há pessoas que nos rodeiam e que apertamos nos braços, seja por ternura, amor, seja por uma amizade tenaz, forte. Há músicas celestiais, Bach, Mozart, Schubert, Chopin, óperas admiráveis que fazem palpitar o coração.

Os filmes magníficos donde saímos perturbados nos nossos afetos e onde as inteligências procuram seguidamente os alimentos, pelo tempo que que teremos para resistir nesta terra, nesta vida. Há livros que nos impedem de morrer estúpido e que nos prendem pelo que há de mais nobre no homem; o espírito e a cultura. Há a beleza duma paisagem, a beleza duma mulher, a ternura, dada ou recebida, a oportunidade duma carícia, o azar dos encontros entre milhares de células humanas que se cruzam e se entrecruzam nas nossas terras, nas nossas cidades. Há um lindo gesto de solidariedade dos outros em relação a nós mesmos, ou o contrário, que aquece o coração tanto do que recebe como do que dá. Há o sorriso dum bebe que descobre após alguns meses neste planeta que a vida, segundo parece, vale a pena ser vivida. Há a ternura duma mão que se aperta do velhinho à velhinha esposa na noite dum mundo cada vez mais difícil. Há a ternura desordenada da mão duma mãe velhinha que acaricia no regaço o seu filho cansado. Existe a beleza dum êxito desportivo, como nós seríamos incapazes de o fazer, deixando aos mais fortes o cuidado de nos maravilhar. Há tudo isso e muitas mais coisas que valem por preencherem as nossas vidas, por revigorar as nossas esperanças terrestres.

Tudo isso não impede em nada de considerar com lucidez e por vezes raiva a estupidez humana presa ao choque de interesses e ao gosto pelo poder. Tudo isso não impede de tomar partido com firmeza pelo partido da justiça e da verdade contra a generalização da falsidade e da maldade. De denunciar os impostores que, pelo que parece, nos nossos dias, são cada vez mais numerosos entre os dirigentes do mundo. Há isso e muito mais coisas que valem a pena por preencherem as nossas vidas, por alimentar as nossas esperanças terrestres.

Depois de tudo isto pode haver, entre os prazeres da existência o de considerar a batalha planetária que vivem, cada um na sua especialidade, os imbecis e os escroques na sua competição pela estupidez recorde e a idiotice máxima. Pode ser um prazer estético, denunciar tudo isso porque, apesar de tudo é preciso, duma forma ou de outra, denunciando as travessuras do tempo, reforçar as nossas defesas para melhor vingar o cansaço da esperança, rebaixando-o ao estatuto de tentação.

Quem ainda quer ganhar a jeira?

Ter, 19/03/2019 - 10:15


Olá, cá estamos nós novamente, a escrever para a nossa gente.

Esta edição tem a bênção de São José, pois 19 de Março é o Dia do Pai. Ao contrário do Dia da Mãe, que foi transferido do dia 8 de Dezembro para o primeiro Domingo de Maio, o Dia do Pai já há alguns séculos que se festeja no dia de São José Operário, pai adoptivo de Jesus Cristo.