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O segredo da Senhora do Naso (IV)

• De quem eram os ossos do pavimento da capela nos finais do séc. XVII?

8. A aldeia do Nardo

Sabemos, pelo documento de 1459, que Genísio estivera erma muito tempo. Durante mais de um século não morara ninguém na aldeia, como referimos no capítulo 2. Vimos depois que os seus moradores fugiram à peste negra do século XIV, refugiando-se no Serro do Nardo. E onde viveram durante mais de 100 anos? A documentação só referencia, para além da ermida, mais três edifícios: a Casa da Senhora, a do padre-ermitão e a das almas (Mourinho, ibidem, 28, 61, 65). Mas as duas últimas já tombaram há muito tempo. Os extensos cabanais, de compridas colunatas, a cerca do gado e o espaço envolvente, sobre um cômorozinho, na medula do carvalhal, deixam adivinhar muita arqueologia. A carta militar de 1950 assinala a existência de ruínas na vizinhança da Casa da Senhora. Não esqueçamos que a ampulheta dos séculos está quase a contar seis, após os descendentes dos fugitivos da peste negra terem regressado a Genísio. E o tempo, esse grande escultor, que esculpe, apaga e volta a esculpir as paisagens humanas, dissolveu, ou apenas escondeu, as marcas deixadas pelos fugitivos da pandemia no Serro do Naso? Onde estão as casas colmadas, de um só piso em terra batida, erguidas à pressa, onde o tabique e o tabuado suplantavam a alvenaria? Mesmo da capela original, acima do solo, nada ficou. O que vemos hoje é arquitectura moderna (sec. XVI) e contemporânea (séc. XIX). O mesmo pode escrever-se da Casa da Senhora, um negativo irreconhecível da sua arquitectura medieval. Ou seja, só a arqueologia poderá mostrar outras pegadas dos moradores da aldeia do Nardo, aqui refugiados durante os séculos XIV e XV. Mas, para concebermos a sua arquitectura, temos de saber que, mesmo dois séculos depois, em algumas vilas urbanas vizinhas, ainda havia muito casario colmado (Armas, 2006, 84/86).

9. Conclusão

O método de explicação em história é essencialmente dedutivo (Le Goff, 1984, 174). E a dedução é uma operação racional, através da qual, em consequência de regras lógicas, concluímos necessariamente uma verdade nova, a partir de verdades anteriores, que não podem ser, elas próprias, já deduzidas. O despovoamento de Genísio e a sua anexação, para sempre, a Angueira em 1459; os seus 45 moradores em 1530, ultrapassando os 36 de Angueira -- a sede paroquial; e as ossadas no pavimento da capela são verdades objectivas, não deduzidas, e confirmadas por documentos, que ninguém pode pôr em dúvida. É a partir destas quatro verdades anteriores que a dedução nos fornece a verdade nova – que é a conclusão geral deste texto: os moradores de Genísio fugiram à peste negra e refugiaram-se no Serro Nardo, termo da sua freguesia; salvaram-se da pandemia porque os seus descendentes regressaram à terra dos seus antepassados, engrossando o recenseamento de 1530; e os restos mortais de três ou quatro gerações – os ascendentes dos que voltaram à aldeia -- foram sepultados no adro, junto da primeira capela da Senhora do Nardo, erguida pelos fugitivos da pandemia. Ou seja, a significação em história faz-se tornando inteligível um conjunto de dados, inicialmente separados (ibidem). Só encadeados, aqueles acontecimentos produzem os laços da explicação histórica. Nenhum deles, isoladamente, é inteligível, não permitindo compreender o que aconteceu no Serro do Nardo, durante os séculos XIV e XV.

Samil, Verão de 2021

*Arqueólogo Universidade do Porto Universidade do Minho

Bibliogafia: ARQUIVO DISTRITAL DE BRAGA, Registo Geral, liv.329, Livro das Confirmações de D. Fernando da Guerra. CAPELA, José Viriato e outros, As Freguesias do Distrito de Bragança nas Memórias Paroquiais de 1758, Braga, 2007. CARTA MILITAR número 67, Serviços Cartográficos do Exército, 1950. FREIRE, Anselmo Braamcamp, “Os cadernos de assentamentos” in Archivo Histórico Português, Lisboa, vol. X, 1919. HEERS, Jacques, História Universal – O Mundo Medieval, Círculo de Leitores, Lisboa, 1976. LE GOFF, Jacques, Memória- -História, vol. 1, in Enciclopédia Einaudi, INCM, 1984. LIVROS antigos das matrizes prediais das freguesias de Genísio e da Póvoa, Arquivo Distrital de Bragança. MARQUES, José, A Arquidiocese de Braga no séc. XV. Doutoramento em História da Idade Média, Universidade do Porto, INCM 1988. MOURINHO, António Rodrigues, O Santuário de Nossa Senhora do Naso – História e Devoção. Tipalto, Tipografia do Planalto, 2010. RIBEIRO, Orlando Portugal o Mediterrâneo e o Atlântico, Livraria Sá da Costa, Editora, Lisboa, 1991. SANTA MARIA, Frei Agostinho de - Santuário Mariano, Lisboa, 1716. SOUSA, Armindo de, in História de Portugal, Direcção de José Mattoso, Condicionamento Básicos, Círculo de Leitores, vol. II, 1993.VAZ, Ernesto Albino, Miranda do Douro, Guia, Câmara Municipal de Miranda do Douro, Tipalto 2009. VAZ, Ernesto Albino, A origem da aldeia da novena da Senhora da Serra – Os moradores da vila de Rebordãos fugiram à peste negra de 1362, refugiando-se na Serra da Nogueira, M.B. e Academia. edu, 2018.

Agradecimentos:

1. À Drª Mónica Salgado pela sua inexcedível ajuda na tentativa de dilucidar a inscrição da marra do Naso. Da próxima vez, com outras luzes, e mais espremido, o granito tem de balbuciar alguns fonemas...

2. À Drª Élia Correia, Directora do Arquivo Distrital de Bragança. Em cerrada pandemia de constrangimentos, facultou-nos a consulta dos livros das matrizes antigas de Genísio e da Póvoa.

3. Ao Prof. Doutor António Luís Crespi, Director do Jardim Botânico da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. A sua disponibilidade e conhecimento permitiram-nos outra abrangência dos nichos ecológicos das herbáceas das pastagens naturais de montanha.

4. À minha neta Camilinha. Demonstrou, mais uma vez, que continuo a padecer de profundíssimas lacunas no manuseamento do computador…

 

Ernesto Vaz

Poder Local: a lei da selva.

É oficial: as próximas eleições autárquicas terão lugar a 26 de Setembro de 2021. Daqui a cerca de dois meses, portanto. Estará em disputa a eleição de 308 presidentes de câmara, com os correspondentes vereadores e deputados municipais, mais 3091 Assembleias de Freguesia com os respectivos elementos e associados executivos das Juntas de Freguesia. Demasiada gente para tão pouco poder. O papel do Poder Local na democracia portuguesa, sobretudo no que às freguesias diz respeito, é pouco mais que simbólico, ainda que a Constituição da República lhe confira importância fundamental na governança do país, articuladamente com o Poder Central e o Poder Regional, que apenas se encontra estabelecido nas regiões autónomas da Madeira e dos Açores, já que Portugal continental, lamentavelmente, continua não regionalizado. Pior um tanto: Portugal é governado como se composto por três regiões, considerando as regiões autónomas da Madeira e dos Açores, sendo o Continente a terceira, especialmente se apreciado no contexto da União Europeia. Isto explica a diminuta importância que as Câmaras Municipais provincianas e as Freguesias rurais merecem dos órgãos do Poder Central em geral e do Governo em particular o que, como é óbvio, mais aprofunda as escandalosas assimetrias regionais que estigmatizam o país, sendo que a maior de todas se consubstancia na megalómana área metropolitana de Lisboa. Portugal pode assim ser visto como um Estado obeso, com um abdómen enorme na região de Lisboa, um governo macrocéfalo no palácio de São Bento e o dito “interior” sofrendo de raquitismo crónico. Interior que mais se assemelha a uma selva, com macaquinhos e outros animais de estimação aos guinchos e onde o Poder Central promove “safaris”. É por demais óbvio, portanto, que para os nossos doutos governantes as autarquias provincianas são inúteis, subservientes ou mesmo escusadas e que as populações remanescentes estão a mais, tudo fazendo para as deslocalizar, por entenderem que serão mais úteis nas metrópoles litorais. Basta olhar para as competências das freguesias, seja qual for a sua população, no que diz respeito ao Equipamento rural e urbano, ao Abastecimento público, à Educação, à Cultura, ao Desporto e Lazer, aos Cuidados Primários de Saúde, à Ação Social, à Proteção Civil, ao Ambiente e Salubridade e ao Desenvolvimento e o Ordenamento Urbano e Rural para concluirmos que o Poder Local se afundou num mundo de penúria e fantasia. O panorama não é mais prestigiante para os Municípios provincianos que estão praticamente confinadas ao trato de parques, jardins, feiras e romarias, com significativa omissão das suas atribuições fundamentais como sejam o Ordenamento do Território, a Energia, os Transportes e as Comunicações, a Saúde, a Proteção civil, a Polícia Municipal, a Promoção do Desenvolvimento e a Cooperação Externa, áreas em que o Governo central põe e dispõe a seu bel-prazer. Neste quadro ganha especial gravidade o despovoamento de vastas regiões do Interior que origina a manifesta inutilidade das Freguesias que são, por regra, canibalizadas pelas Câmaras Municipais, que por sua vez são canibalizadas pelos governos que o mesmo é dizer pelos partidos. Da mesma forma que as vilas canibalizam as aldeias e a cidades canibalizam as vilas. Mais uma prova, evidente, de que o ermamento dramático da maior parte do território nacional é consequência de políticas pensadas muito embora seja apresentado como uma fatalidade por parte dos governantes, que dessa forma ali instituem, tacitamente, a lei da selva. O que leva os partidos a procurar afanosamente conquistar o maior número de autarquias, sempre que há lugar a eleições autárquicas, como se de troféus de caça se tratasse, tendo em vista a tomada do poder central e alimentar as clientelas com benesses e mordomias. Um Poder Local, servil e subserviente, portanto. Assente, para lá do mais, num processo eleitoral autárquico abastardado em antecipado acto eleitoral legislativo, que nada mais é que um enfeite democrático de efeitos perversos.

Este texto não se conforma com o novo Acordo Ortográfico (VS 29/7/2021)