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Eles bem juram solenemente...

Não creiais, ninfas, não, que fama desse A quem ao bem comum e do seu rei Antepuser seu próprio interesse, Inimigo da divina e humana Lei. (Camões, Os Lusíadas, Canto VIII, est. 84)

Ultimamente parece que nos deixámos afetar com o que a elite angolana anda a subtrair ao povo. Ora, a não ser que queiramos projetar lá fora tristezas domésticas não assumidas, é escusado ir a áfrica para apontar o dedo a corruptos. No blogue apodrecetuga.blogspot.com (que convido a visitar), milhares de documentos expõem as artimanhas dos nossos e explicam por que razão conquistámos um honroso terceiro lugar no pódio da europa no que toca a corrupção. O que não admira: por tradição nós costumamos ser dos melhores no que há de pior e dos piores no que há de melhor. Por que cargas de água haveria de ser diferente nisto de exercer funções públicas para extrair delas proventos pessoais em prejuízo do tal bem comum de que já falava camões? Uma frase estafada diz que o poder corrompe. Aceitá-la como verdadeira é à partida passar a batata quente para uma coisa abstrata que não pode ser responsabilizada – o poder – para infantilizar e desculpar as pessoas de carne e osso que o exercem. Quanto a mim, não creio que um cidadão entre honesto para um cargo e saia de lá corrupto. Quarenta anos foi tempo mais do que suficiente para que salazar comprovasse esta tese e isso não aconteceu. O poder corrompe porque a maioria dos que hoje o procuram, sabendo de antemão que neste jardim mal frequentado o crime compensa, levam já a intenção fisgada de se corromperem. E se é verdade que não serão todos iguais (outra frase batida), andamos lá perto. Ex-tesos que ele engordou são às carradas. Um daqui da terra dizia há tempos numa entrevista que devíamos admirá- -lo por ter vindo do nada e hoje ser o que é. Eu não me apetece admirar quem, enquanto detentor de um cargo concedido de boa-fé e essencialmente para servir a comunidade, engendra esquemas ilícitos com o mundo empresarial (banca, imobiliário, construção, energia, comunicações): contratos em que o estado sai sempre a perder e é defraudado em milhares de milhões; alienação e venda de bens públicos ao desbarato; concessões de monopólios e de rendas chorudas (que são em si a negação do capitalismo); organismos reguladores estatais cujos membros são pagos pelos privados que vão regular; empresas que nomeiam governantes; legislação feita a pensar em entidades concretas, etc. etc. Com uma parte dos sete mil milhões de euros que sacam cada ano do orçamento do estado (contas por alto), os corruptores oferecem depois aos corrompidos cargos dourados vitalícios e outras generosidades, assim como às famílias deles, aos amigos deles, aos partidos deles, à comandita deles. Um cenário mafioso feito com a cobertura de especialistas em elaborar, torcer e fintar leis, não vá o diabo armar alguma. É assim que estes futres acedem à prosperidade, incólumes e sempre reverenciados como xô ingenheiro e xôtor. A culpa é sobretudo nossa. Quem não quer saber consente. Só um povo entorpecido poderia aceitar que várias propostas legislativas contra o enriquecimento ilícito tenham sido sistematicamente chumbadas no parlamento. À perceção de sermos comidos em grande, deixámos de acreditar e alheámo-nos. Quase setenta por cento defecamos nas eleições como forma de protesto, exatamente do que eles precisam para prosseguir na rapina enquanto nos vão anestesiando com o comentário televisivo, futebolístico ou não. Bastam-lhes os votos dos outros trinta. E quem são estes? Primeiro, os ingénuos que acreditam sempre e votam religiosamente. Depois, os apanhadores de beatas, lembrados da fome aguda que passaram ao longo da história, da vida de cão. Vivendo agora menos mal com restos, agarram-se ao partido sempre a pensar na palavrita, na atençãozita, no jeitito, na cunhita, no tachito. Votam reverentemente. Por fim, uma geração rasca instalada, sem ética, chupista, uma clientela medíocre que preenche todo o tipo de cargos em ministérios, autarquias, institutos, fundações, observatórios e outros organismos públicos, está encantada com a golpada dos ajustes diretos e prepara já uma nova vaga de assalto se houver regionalização. Votam compulsivamente. Pobre país. Será para nos compensar desta poça fétida que o marcelo nos beijoca e abraça tanto?

Bom senso & Bom Gosto

O título da crónica remete-nos para uma polémica literária de tal forma ribombante que marcou uma época e continua a ser marca maior de castigo do excesso, do dislate, do encardido a sobrepor-se alvo tecido do múnus político. Se as sucessivas metidas do pé na poça da prosápia e ridículo deslumbre da envernizada esquerda caviar de Graça Fonseca, ministra da Koltura, não trespassa o influente circulo das Artes, se as passadas em falso de Céu Antunes, ministra do Sol na eira e chuva no nabal apenas irrita a CAP e seus associados, se a ministra da Saúde faz sorrir as pedras da calçada quando puxa a manta das estatísticas a seu favor e obriga os calhaus dos caminhos a verterem lágrimas ante o caos e atrasos nas consultas e cirurgias, a ministra Ana Mendes Godinho averbou o Prémio Camões da vesguice, da nódoa e do desaforo ao responder como respondeu ao Expresso relativamente ao nó- -górdio de Reguengos de Monsaraz, ainda ao relativizar o número de idosos falecidos derivado da pandemia. A ministra que ostenta apelidos de uma conhecida família socialista de Tomar, conseguiu ofuscar o tremendista Miguel Relvas quando aconselhou os jovens quadros à procura de trabalho a desampararem a loja e emigrarem. O Sr. Passos Coelho estatelou-se na referida poça da asneira achincalhando os reformados e pensionistas, estes e os jovens utilizaram a arma do voto e, despediram-no para desgosto de um ventrículo da asneira cujo nome é Pedro Duarte. Bem pode António Costa elogiar a ministra Godinho, bem pode o primeiro-ministro apelar à paz e concórdia, bem pode o secretário-geral dos socialistas mandar o arguto Carlos César piscar o olho esquerdo à Dona Catarina (muito suave para a ministra) e ao Sr. Jerónimo, o mal da Dona Ana Mendes Godinho está feito e as sondagens vão emitindo sinais a provarem quão maléfico é o sal nas feridas abertas na ânima dos velhos não do Restelo, sim de todo o País. O PSD ainda nos dias que correm está a pagar as argoladas perpetradas no âmbito da Troika, muitos dos seus dirigentes comportaram-se pior que comissários do povo a executarem um qualquer plano quinquenal, as coisas são como são, quando o bom senso e o bom gosto são esquecidos o corpo eleitoral é que as paga. As quatro ministras estão longe de serem émulas do bando dos quatro, no entanto, estão perto de afundarem os socialistas nas próximas eleições autárquicas. E, depois logo se vê, dirá o conselheiro Acácio de serviço. O Dr. António Costa possui a experiência e sabedoria suficientes para ignorar os acacianos, ele além de molesto sabe onde estaciona o sol quando as nuvens o ocultam, porque os cirros estão a enegrecer entrou em velocidade frenética na intenção de sair airosamente do saco de ataques, ameaças, e demais torpezas vindas ao de cima em virtude da auditoria da Ordem dos Médicos. Dois ou três budas do sistema questionam e colocam em causa a autoridade da Ordem dos Médicos, curiosamente não lançam pústulas à inventariação das deficiências do triste episódio no Lar da bonita vila alentejana, não precisamos da pitonisa de Delfos a fim de apontar o rabo do gato escondido na burocracia da Administração Regional de Saúde do Alentejo. Uns finórios estes senhores! O primeiro-ministro não demite ministros a pedido, no entanto, não esquece o tremendo pontapé em falso da Ministra, a seu tempo cobrará o custo do falhanço comunicacional, até porque sabe-se como principiou o novelo mediático, não se sabe quando terminará porque os médicos têm uma importância crucial nas comunidades, sabem usar os seus atributos e, na esmagadora maioria não desconhecem o sentido de corpo baseado no milenário código de Hipócrates. A sociedade portuguesa está crispada, está farta de propaganda, farta de governantes a evidenciarem a repetida carência de bom senso, quanto ao bom gosto começamos a nada dizermos, só pensamos em nos salvarmos usando máscaras de vários tipos e feitios. Até as dos caretos servem! A procissão dos defuntos lembra a urgência de as arcas serem desencoiradas. Acerca das encoiradas escreveu magistralmente Magister/Mestre Aquilino Ribeiro. Antes de correr o pano sobre a crónica e, porque o tempo corre, as acídulas declarações de Jorge Gomes no rescaldo das eleições distritais do PS de Bragança são a prova provada da falta de bom senso. No distrito os atiçadores comprazem-se em avivar as brasas da discórdia. No PSD estão (aparentemente mortiças), porém a buba continua por sarar. O meu estimado amigo Mota Andrade entrou na pugna e perdeu. O operativo Jorge Gomes pode não saber cantar a canção mexicana El Deguello, mas conhece e aplica a letra – não há piedade para os vencidos. PS. Estejamos atentos às urdiduras dos dois partidos no respeitante à composição das listas das autárquicas. A tartaruga venceu a lebre. A tartaruga é persistente, não acredita em renovatos renovados. Acredita nela.

Vendavais- O vírus não é racista

Num tempo em que todos correm sem saber exatamente para onde, ainda parece haver quem tenha a certeza de alguma coisa. Possivelmente têm essa noção, mas não passa disso mesmo. Não sei se andam a fugir de alguma coisa ou de encontro a outras coisas, mas correm como loucos. Parece-me que vão de encontro a qualquer coisa, seja o que for, mas vão. O tempo de veraneio a que alguns têm direito neste agosto tão diversificado, já que chove no Norte e há Sol e calor no Sul, vai sendo marcado pelo mesmo tema que nos entra pela casa dentro há já quatro ou cinco meses e do qual estamos todos fartos. Falar do vírus e das suas vagas que atropelam os mais audazes e os menos prevenidos em todo o mundo, é recorrente. O mundo parou com a chegada deste Corona vírus. Nomes, tem e demais, mas todos dizem o mesmo. Morte. Todos esperávamos que aproveitasse este tempo de férias para ir para bem longe, mas tal não aconteceu e instalou-se com armas e bagagens em todos os recantos deste planeta. Resta saber se não veio de outro recanto do universo, enviado por alguma nuvem de poeira cósmica. A verdade é que chegou e ficou, obrigando todos a obedecer-lhe como se fosse o rei único e universal. E será. É rei de todos os povos e raças. Não é racista. É rei e a todos castiga sem dó nem piedade, especialmente os que não obedecem às suas regras, fazendo lembrar os de antigamente, os que tinham poder absoluto e o justificavam como sendo divino. Não, este não será divino, mas parece. Castigar, castiga. Ora, não sendo este rei, racista, que lei permite que alguns o sejam impunemente? Num tempo em que não nos preocupamos muito com assuntos paralelos ao vírus, há pessoas que resolvem divertir-se com o facto de estarem em confinamento e enviarem e-mails aos amigos a ameaçar os que calham, assustando-os ainda mais que o próprio vírus. Não está certo. Brincadeira tem hora! Podiam aprender com o rei universal que, parece não os amedrontar. E se fossem castigados pela vara da justiça vírica? É que muitos são castigados sem nada ter feito que justifique tal sanção. Pois, este ato racista, altamente condenável numa sociedade democrática, sendo antidemocrático, merece castigo. Mas como castigar quem não mostra a cara? Pode ser que acabando o confinamento a que estão sujeitos ou se sujeitam livremente, saiam à rua e mostrem, além do suposto nome, a face da injustiça que o rodeia. As raças não passam de designações que os europeus atribuíram aos povos que foram descobrindo ao longo dos séculos. Eram diferentes na coloração da pele, só isso e assim uns passaram a ser negros, ouros amarelos ou vermelhos e outros brancos. Pois, mas a origem de todas as raças está em África onde todos eram negros e a coloração da pele só mudou devido à menor incidência do Sol e à diferença climática dos diferentes locais ao longo de muitos milhares de anos, o que nos leva a ter uma mesma origem ancestral. Isto não nos torna diferentes nem permite que sejamos racistas. Nada o justifica e muito menos justifica certas atitudes completamente antidemocráticas. Em pleno século XXI e inseridos em sociedades democráticas que têm por trás anos de luta para se afirmarem com tal, não é admissível que subsistam radicalismos deste género em pequenos recantos de alguns países, especialmente aqueles onde o vírus ainda não entrou. O Verão está a dar os últimos suspiros, mas o receio deste vírus que não desaparece não quer ir de quarentena, mas vai-nos obrigando a fazê-la. Contra a nossa vontade, vem aí um tempo de aperto e de muito receio onde muitos serão apanhados por este rei universal, cujo desfecho será sempre imprevisível. Não sendo este rei de estirpe rácica, bem podia apanhar os que o são e ensiná-los a temer as leis que regem este mundo de todos nós.

A minha tia Inês e a acção feminista

Bom dia, terra quente, nesta altura não há por aí terras frias, pelo menos antes de o sol se pôr. Como vão esses fins de tarde? Espero que muito bem. Ora, peço desculpa mas hoje dentro deste pequeno rectângulo mando eu e daqui ninguém me tira. Como nos tempos de infância quando nas férias se formavam equipas para passar as tardes em modo “roda, bota, fora” dentro de um ringue de futebol, havia sempre alguém que se negava a aceitar as convenções da derrota e se aproveitava do facto de ser dono do esférico para usar o trunfo do “a bola é minha ninguém joga” e assim não ter de sair do campo. De modo que hoje é à Lobo Antunes, as minhas tias, os meus avós, as criadas e o que tinham para ensinar a cada novos imberbes varões, o empregado corcunda do café com o bigode amarelecido do cigarro, as velhas de Lisboa aperaltadas avenida acima, avenida abaixo e o alferes miliciano que ainda hoje jaz em palhas de capim deitado, velado num presépio de seringas trémulas de morfina, unimogues de patas ao ar, soldados cheios de surro e os sacramentos atropelados do capelão. E com António nos perdemos no emaranhado dos seus dédalos interiores e nos seus mundanos finos reparos de escritor como se os leitores fossemos o álcool desestimadamente tragado ora para esquecer ora para solenizar tudo isto. A minha tia Inês foi a primeira de uma enchente de filhos. Aquilo que agora se diria ser uma família numerosa, mas sem a chiquesa a que hoje soa nem os descontos a que dá direito. Os mais velhos tratavam dos mais novos numa empresa que se organizava a si mesma segundo normas estritas e bem definidas e cujo CEO marcava o compasso da organização e por vezes o passo à entidade familiar sem grande margem para sugestões ou sindicalismos. Lembrei-me da minha tia Inês por um texto que li sobre a temática do feminismo. Hoje faz-se tanto ruído sobre alguns assuntos que quase viram entretenimento e é triste que, apesar de tanto falar e aludir, a sociedade pouco mude e cada vez mais andemos como o gato e o rato. Uns irados contra os outros, a esgrimir palavras nos computadores e nos telemóveis, de tal modo que parece que o que move os ânimos das pessoas para estas batalhas é cada vez mais o jogar este jogo do “tu cá, tu lá”, o aparecer para “mostrar que assim se defende e assim se ataca”, quiçá vincar o ódio por quem está do outro lado da barricada. E todo o discurso é praticamente só teórico de parte a parte, centrado nas ideias, nas concepções, no histórico-social, mas em que o “fazer” quase não ocupa lugar. Não se diz às pessoas, mais que tudo, o que é que cada um de nós deve fazer enquanto cidadão, pai, filho, estudante, trabalhador, aposentado, etc. para efectivamente superar estas lacunas, melhorar a comunidade e a interação social. Pouca ou nenhuma atenção se dedica a cultivar nas pessoas o “fazer” ou o “saber fazer”, o que diz muito da vacuidade não destas batalhas, mas sim da maioria dos seus batalhadores. A acção e sobretudo a interacção, a abertura ao outro são aspectos que urge promover numa sociedade cada vez mais segregada e extremada e que infelizmente parecem não ser sequer tidos nem achados de forma concreta no “diálogo” sobre estes assuntos. As palavras já me trouxeram até aqui mas eu vim para falar da minha tia Inês e sobra-me já menos espaço. Mulher de decisões sólidas e gargalhadas fáceis – e de palavrão fácil também, para o qual as décadas de Porto certamente terão contribuído – que passou por tudo aquilo que de agreste e de genuíno teria por que passar quem no começo dos anos 40 nascesse numa aldeia raiana do nordeste trasmontano, recém-tocada pela guerra civil espanhola. Fez medrar irmãos e filhas, esteve uns anos sem o marido emigrado, mais tarde deu ainda guarida a meus pais na época em que os pés descalços de Gabriela colocavam o país em suspenso e o prendiam ao televisor na hora de jantar. Mas a história que a ouvi contar e que me veio à memória a propósito do feminismo foi a de que na adolescência alguém lhe ofereceu um par de calças, mas o meu avô não lhas deixava vestir. Calculo que terá sido entre o final dos anos 50 e o início dos anos 60. Nisto chegou o dia do baile da aldeia e também estava proibida de ir talvez porque andasse já a namoriscar. A moral da história é que a tia Inês arranjou forma de se escapulir e não só foi ao baile como fez questão de ir a presumir as calças novas. Ela sabia que o after-party não seria pêra-doce, como de facto não foi, mas ficou a atitude e a personalidade. Não era ser-se feminista, era só ser-se jovem com uma grande dose de coragem e de juventude. A minha tia também era Maria, Maria Inês, eram tempos de velhas cartas, “Três Marias”, quatro, cinco, na verdade eram todas Marias, mas sem hashtags. É verdade que as conquistas hoje não são tão perceptíveis como já foram no nosso país. Actualmente é preciso escavar mais para se encontrar uma causa. Antigamente bastava vestir umas calças ou querer ir ao baile. Por isso mesmo, embora sendo mais seguro, ser feminista em Portugal é hoje uma tarefa mais árdua, combativa. Creio, no entanto, que sem acção as mensagens não passam, as coisas não se alteram substancialmente. Os crimes passionais e a violência doméstica têm aumentado nos últimos anos, mas os direitos sociais não se alcançam só com teoria, conferências ou publicações. Por isso, em vez de se tornar o tema numa troca de inflamadas flechas ou numa medição elitizada de eloquências sem grandes efeitos práticos, viremo- -nos para as pessoas comuns, ensinemos a fazer, eduquemos para a acção e para a interação. Não é preciso teorizar muito para se tomarem atitudes. Quanto à minha tia Inês, os seus olhos claros quase transparentes apagaram-se há dois anos, mas as suas vivências contadas entre gargalhadas andarão cá por mais uns tempos. E algumas delas também acabam por fazer parte da nossa história. Obrigado, tia Inês.

Nós trasmontanos, sefarditas e marranos- Manuel Lopes, um judeu do tempo da inquisição

Manuel Lopes esteve em Itália apenas uns 10 meses, entre Outubro de 1700 e Agosto de 1701. Obviamente que um dos primeiros objetivos que prosseguiu foi o de se fazer circuncidar. Ele não contou especificamente como as coisas aconteceram, mas fez uma descrição genérica da cerimónia, baseado na sua experiência de circunciso e em outras cerimónias de circuncisão a que assistiu. Veja-se: — Para se circuncidar, juntam- -se 10 homens e um deles serve de padrinho. E este se senta numa cadeira e tem o menino sentado nos joelhos. E logo o homem que faz de ministro, com uma faca, abre a parte do prepúcio e logo com as mãos afasta a pele e com uma tesoura corta um pouco daquela pele e lava a ferida e dois homens lhe aplicam uns unguentos dos vasos que têm nas mãos.(1) Acrescentou que a circuncisão dos meninos se faz normalmente em casa dos pais e não há ministros designados, antes são os pais que os chamam, entre aqueles que estão capacitados para isso. E disse mais: — A parte do prepúcio cortada se guarda num vaso de vidro, que está na sinagoga, e havendo muitos, se entregam aos judeus que vão de Jerusalém a Livorno, para os levarem a Jerusalém e para os lá enterrarem e disseram a ele confitente que os enterravam na ocasião em que enterravam algum judeu.(2) Falou depois da Yeshiva, a escola onde as crianças, a partir dos 4 anos e até aos 8, aprendiam a ler e escrever. E aprendiam também os preceitos da Lei Mosaica, lendo por “um livro pequeno do tamanho de umas horas” em língua castelhana. À escola vão as crianças de manhã, de tarde e à noite. Três vezes por dia vão também os adultos à sinagoga onde “todos os homens se punham pelos ombros um pano à maneira de toalha, a que chamam Tallit e dizem significar capa de Deus, que é de tafetá branco”, o qual tem nas pontas 4 cordões de fios de seda e pelo de cabra, unidos por 3 ou 4 nós e a que chamam “Tzitzit”. E enquanto isso, na sinagoga, rezam em hebraico uma oração que Manuel traduziu assim: — Bendito Adonay nosso Deus, rei do mundo, que nos santificou em suas santas benditas encomendanças e que nos ensinou a pôr os Tzitzit.(3) Manuel Lopes descreveu depois o uso e a forma de cada judeu colocar os Tefillin, em volta do braço, antes da oração na sinagoga e a respetiva oração que ele recitou em hebraico e em castelhano: — Bendito Adonay nosso Deus, rei do mundo, que (…) nos ensinou a pôr os Tefillin.(4) Manuel não soube explicar o significado da usança dos Tallit, dos Tzitzit e dos Tefillin como elementos de preparação para a oração na sinagoga. Continuou, porém, explicando que, depois de estar assim equipados, cobriam a cabeça com o chapéu e se sentavam nos bancos, dizendo 3 orações, sendo que a primeira, chamada Tefillah, era cantada. As outras duas são o Shemá e o Amidá. Também não soube explicar o significado de cada uma destas orações, nem porque as duas primeiras as rezavam sentados e a última “estando em pé e tendo os pés juntos”. As mulheres assistiam, separadas dos homens, sentadas nos bancos que havia nos corredores, à volta do espaço central da sinagoga, mas liam por livros iguais aos dos homens e a que chamavam Minchah, nome que ele não sabia explicar. As ditas cerimónias prolongavam-se por cerca de hora e meia e havia uma sessão de manhã e outra de tarde. Havia um judeu encarregado da sinagoga e que percorria as ruas da cidade chamando os crentes para as orações – o chamador. À noite também havia “juntas” na sinagoga, se bem que com menos gente a frequentá-las. E nesta “junta”, para além do Shemá e do Amidá, havia uma oração que era cantada e se chamava Arbit. Estas cerimónias e ajuntamentos faziam todos os dias da semana, exceto à sexta-feira, dia em que, “logo que saíam da junta, voltavam para as suas casas e os homens despiam os vestidos que ordinariamente traziam e vestiam camisas limpas; e as mulheres, de vestidos compostos, voltavam para a sinagoga, até ao pôr-do-sol”. A essa hora iluminavam a sinagoga, com “grande número de lâmpadas e aranhas e alquimia ao redor da sinagoga”, seguindo-se especial celebração a que apenas acorriam os homens, como o Manuel Lopes explicou para os inquisidores: — As mulheres não vão a estas juntas, porque vão para suas casas, limpando-as e compondo-as e fazendo o que se há-de comer no sábado, porque nele não se acende o fogo nem se faz coisa de trabalho, nem se toca em dinheiro.(5) As lâmpadas na sinagoga ficavam acesas até se gastar o azeite e se apagarem por si. Tal como em casa onde, ao entardecer de sexta- -feira, se acendia a “Menorah, que tem 7 luzes” – acrescentou Manuel, que continuou dizendo a seguinte oração: — Bendito Adonay, meíssima criatura e maravilha para fazer o sábado que guardam em observância da lei dos judeus.(6) No ajuntamento do sábado na sinagoga não punham os filactérios, mas apenas o Tallit. E, além das 3 orações referidas, Manuel disse que cantavam “certos Salmos de David”, acrescentando mais informações: — E logo se põe o Tebah, que é a modo de tribuna, no que chama para o ofício de Hazan um porteiro que apregoa a ordem de Hazan para correr a cortina da Arca aonde está a Lei e para abrir as portas e tirar dali a Lei e levá-la até à Tebah (…) e voltam a colocar na Arca a Lei, e correm as cortinas e o dinheiro que isto importa se distribui e reparte entre os pobres, em diferentes dias da semana, que não seja sábado, porque no sábado não se pode mexer em dinheiro. E o judeu que leva a Lei desde a Arca à Tebah, a entrega ao Hazan e este, sem dizer palavra, a mostra ao povo donde para que todos a vejam. E na junta de sábado à tarde, o dito Hazan sobe à tribuna e diz Daras (?), que é o sermão em que explica segundo a Lei de Moisés…(7) Chamado a falar sobre as celebrações festivas judaicas, ao longo do ano, Manuel Lopes começou pelo Pessah, semelhante à Páscoa dos cristãos. Prolonga-se a celebração por espaço de 8 dias “em que não comem pão levedado, nem o amassam as mulheres, nem tão pouco trazê-lo para a celebração na sinagoga”, que enfeitam com tafetás e terciopelos, acendendo muitas luzes pelos corredores e também “no solo, no meio da sinagoga”. E durante aqueles 8 dias que dura o Pessah, cantavam e rezavam orações distintas e também alguns salmos. Sobre a Páscoa das Cabanas, o Sucot, disse que cada um a celebrava em sua casa, em parte não coberta, fazendo uma cabana de canas, coberta com murta. Na cabana ceavam e acendiam a Menorah de 7 luzes. Acrescentou que não sabia por quanto tempo a celebravam. O mesmo sobre a Festa das Rosas, Roshaná: que não recordava do tempo nem das cerimónias que especificamente faziam. Disse também que não sabia a data em que caía o Kipur, festividade maior, celebrada em memória da destruição de Jerusalém. Porém, acrescentou as seguintes informações: — Comem em sua casa às 3 da tarde, assentados no chão e com sapatos e sombreros, vão à sinagoga, adornada em conformidade. E nas ditas páscoas, estão assentados no chão, toda a noite, até ao outro dia de tarde, cantando e rezando orações pertencentes à dita destruição de Jerusalém. E pela dita tarde, o Hazan sobe ao Tebah e dizem o Doras em idioma castelhano; e acabado, se levantam do solo e se sentam nos bancos e começam com a oração da noite, que se chama Arbit e o Shemah e Amidah e acabada, voltam para suas casas. E em todo o tempo que dura a festividade, não comem até ter saído a estrela; e alguns, saindo da sinagoga, vão para sua casa, mas não dormem na cama, mas no chão, em memória dos judeus de Jerusalém que naquelas noites dormiram no campo, na terra. E estas cerimónias e o jejum observam todos os judeus.(8) Falámos já de muitas pessoas, familiares e amigos, conhecidos de Portugal que Manuel Lopes encontrou em Livorno fazendo vida de judeus e usando nomes hebraicos. Resta apresentar o líder da nação sefardita de Livorno, o Trasmontano Gabriel de Medina, de que Manuel Lopes disse: — Conheceu em Livorno a Gabriel de Medina, não sabe de onde era natural, nem se era batizado, mercador de ofício, que tinha 4 ou 5 navios por sua conta para o comércio, mas sabe que era judeu e o viu assistir na sinagoga. E ouviu dizer que era casado e tinha um filho de 13 anos, e no dia em que os completou, ofereceu à sinagoga o fabricar de novo a escola da dita sinagoga; e não se recorda ter ouvido o nome de sua mulher e filho.